O doutor em Filosofia Jurídica e especialista em Sociologia das Instituições Enrique Del Percio esteve na última semana no Brasil com o objetivo de trabalhar com alguns grupos que estão pesquisando o tema Fraternidade em Caruaru, vinculados à Rede Universitária de Estudos da Fraternidade e à Cátedra Chiara Lubich. Na ocasião, o professor da Universidad de Buenos Aires (UBA) concedeu entrevista sobre alguns dos temas com os quais ele trabalha.
Desde quando você trabalha com o tema “Fraternidade”?
Desde que Antonio Maria Baggio me convidou no ano que apresentou seu livro “A fraternidade – o princípio esquecido” em Buenos Aires, e então comecei a trabalhar este tema, e depois Antonio me convidou para o I Encontro da RUEF, na cidade de La Plata, para dar uma palestra.
Quando me envolvi definitivamente foi quando foi feito o primeiro grande encontro sobre fraternidade em Tucumán – Argentina e que os amigos da RUEF convidaram-me para dar a palestra inaugural, onde falei precisamente dobre “Fraternidade e Conflito”. Eu comecei a pesquisar sobre a dimensão conflitiva da Fraternidade, isto é: como fazer para que não seja o conflito que imponha as regras da sociedade para o qual temos que ser muito conscientes que a fraternidade primeiramente nos fala de conflitividade; as relações fraternas primeiramente são conflitivas e só secundariamente como desejo podemos construir a outra coisa.
A educação tem sido uma das grandes questões para governos de todas as partes do mundo, mas, principalmente nos países em desenvolvimento, é possível observar que ela é baseada em critérios fora da realidade, sendo ministrada por professores desestimulados, o que tem como consequência a desmotivação dos alunos. Qual seria o caminho para transformar esta realidade e oferecer uma educação de qualidade de uma forma geral?
No caso particular da Educação Superior eu acho que a pergunta é particularmente pertinente porque tem que haver precisamente com o pensar em termos de contexto. Um exemplo é a questão da cota para negros: se seu avô afrodescente e possivelmente africano diretamente era escravo, ele podia pensar que sua liberdade terminava onde começava a dos demais? Ou ele devia pensar que conseguiria sua liberdade fugindo? Como pensar a ideia de dignidade humana no caso de um escravo? E além disso, como pensar a dignidade humana do escravista?
Minha pergunta é para que falamos de integração se justamente a ideia é que nós dentro da universidade possamos não só transmitir saberes, mas sobretudo aprender dos diferentes. Eu verdadeiramente desejo aprender no Brasil a filosofia tupi-guarani, mas ainda não encontrei quase nada que trabalhe este tema, mas sempre vejo pessoas que acreditam que a filosofia é o que produz uma pequena tribo, a tribo branca que habita na Europa. O resto das tribos parece que não produz filosofia, não produz teologia, direito. Isto me parece um problema sério da nossa universidade em termos de fraternidade, porque assumimos uma posição paternalista. “Nós somos os que sabemos”, e porque sabemos? Porque aprendemos a partir de nossos “pais”, que moram na Europa, nos Estados Unidos e nós levamos a ensinar isto a negros ignorantes, índios ignorantes, nós que vamos a ensinar. Esta é a ideia que existe ao invés de estabelecer um diálogo fraterno onde todos possamos aprender de todos.
Qual a importância de se estabelecer o estudo de uma filosofia crítica latinoamericana situada na realidade dos países latinos, considerando as contribuições europeias sobre o pensamento crítico somente em segundo plano?
Nós temos nossos próprios problemas, então trata-se de receber o melhor das tradições europeias, mas adaptá-las as nossas realidades e também em diálogo com aqueles elementos que surgem de nossas próprias tradições culturais. Neste sentido eu acho que a universidade em geral tem sempre uma vocação de universalidade. Quando eu vou dar aulas na Europa, eu não gosto de ir a estes centros de estudos latinoamericanos onde nos olham como se fôssemos algum tipo de animal e com suas categorias nos estudam. Eu procuro ir a lugares onde se debatam os grandes temas com categorias latinoamericanas, o que não é o mesmo. Sempre a universidade tem pretensão de universalidade, isto é, de conhecer o que acontece no mundo e não quando pensa na América Latina, pensa também a partir da América Latina, isto é, nós sabemos que temos algo que dizer hoje frente à crise europeia, frente aos problemas da Síria, frente aos problemas do Ebola na África. Nós temos algo diferente a dizer, não será melhor, não será uma solução mágica, mas é algo que temos que dizer.
Agora, para poder falar da universalidade nós temos também que ter conhecimento universal, o problema é que só posso conhecer por mim mesmo até onde a minha capacidade dá. Em termos metafóricos: eu só posso ver até onde os meus olhos me permitem ver, depois o que fica além do que meus olhos me permitem ver eu só posso conhecer escutando o que os outros me dizem. Mas o homem ocidental não é acostumado a escutar, ele observa, porque a observação implica dominação, por isto construimos observatórios sociais e não escutadores sociais, e observar implica penetrar, indica um exercício de domínio. Mas a escuta implica uma situação distinta, implica abrir-se ao outro. Um não tem que se pôr no lugar de dominador, mas em lugar de escuta, claro que para escutar você sabe que pode ser traído pelo outro, mas não tem melhor remédio que isto. Se você escuta somente uma pessoa, pode ser traído, mas se escuta muitos, a possibilidade diminui então você tem que acostumar-se a escuta do outro, mas não por uma questão ética, por uma uma questão epistêmica, para poder conhecer, é importante escutar ao outro.
Todos desejamos saber e para saber devemos escutar. Isso é o que eu, retomando a tradição da filosofia lationoamericana, chamo de universalidade situada; para diferenciá-la da universalidade europeia que eles consideram que o que eles veem é a realidade. Para nós, entendemos que vimos uma porção da realidade, mas essa realidade é muito mais vasta, ampla, e para isto devemos escutar os demais.
Em sua obra “Ética y fraternidad en la educación filosófica”, o senhor afirma que a fraternidade pode ser entendida de duas maneiras diferentes: ou como aquilo que é, na verdade, ou o que gostaríamos que fosse. Quais as implicações e consequências que envolve cada uma dessas maneiras?
Eu me especializei na questão do caráter conflitivo da realidade e porque a fraternidade tem um caráter conflitivo? Porque as relações horizontais estimulam o conflito: os irmãos brigam precisamente porque têm essa relação horizontal. A relação vertical tende a dissuadir, evitar o conflito. O empregado pode odiar seu chefe, mas não o enfrenta porque sabe que pode ser demitido, o mesmo acontece em relação ao sargento e coronel, ao sacerdote e o bispo, em geral sempre as relações verticais, a exemplo de pai e filho tendem a se evitar o conflito. Eu penso nos exemplos da fraternidade da mitologia: Rômulo e Remo, Tupi e Guarani, todos os irmãos da Bíblia, exceto os Macabeus, brigam entre eles. Então eu vinha pensando se a fraternidade fala de briga, de luta, também falamos de uma fraternidade no outro sentido?
Há um desejo muito profundo dos seres humanos de viver em harmonia, de viver em um mundo onde o amor, a paz, sejam a norma e não o ódio, não a luta. A partir daí comecei a desenvolver esta ideia de fraternidade que é a fraternidade como um Charlo, ele era um ser de duas caras que com uma cara olhava a origem e com a outra o fim. A cara que olha a origem é a cara mais que realista, é a cara conflitiva onde vê que o conflito está sempre presente e pode chegar a ser a guerra, a morte. Mas com a outra cara que olha o fim, está dizendo que os seres humanos têm um fortíssimo desejo de viver em harmonia. Se olharmos só a cara que mira esperançada o futuro, corremos dois riscos: um é um risco menor, que é perder tempo, porque vamos dizer “temos que construir um mundo onde todos sejam iguais”, mas eu sei que faz muitos milhões de anos que isso não acontece, mas não significa que devemos deixar de pensar assim; mas significa que se só miramos isto é uma ingenuidade. Mas temos outro risco que é ainda pior: que queremos construir um mundo onde todos se amem, mas se não podemos construir esse mundo, é por culpa de pessoas ruins que não nos deixam. Assim corremos os riscos de pensar que nós somos os bons e os outros são maus, isso é ainda pior que pensar que o outro é um inimigo, pois pensamos que ele é também inimigo de toda a humanidade e este é o problema de pensar somente com a realidade utópica da fraternidade.
Mas se pensamos só com o olhar da origem, corremos o risco que é reduzir toda a vida política e social a uma mera luta de amigo contra inimigo, onde o fim da política e da sociedade seja eliminar o outro e este é um risco, não pela questão ética, mas pela questão científica. A história nos mostra que muitas vezes houve guerras, mas muitas vezes houve também concordância, propostas de avanço a partir de consensos. Então a fraternidade é essa palavra que nos fala da cumplicidade da vida humana.
De que forma a fraternidade pode ser colocada em prática como o foco de uma reflexão política filosófica na sociedade atual?
Temos duas dimensões da fraternidade, o primeiro é reconhecer a dimensão conflitiva e que somos irmãos; não trata-se de construir a fraternidade, trata-se de reconhecê-la, isso é um grande desafio. O grande desafio precisamente é descobrir que somos irmãos, um exemplo é a África do Sul dos tempos do Aphartheid: os brancos e os negros eram irmãos, mas os brancos não aceitavam isso e como não aceitavam, os brancos não viviam bem. Não se realizavam em suas expectativas de vida os negros, mas também não realizavam-se os brancos, a sociedade inteira fracassava.
Eu estive na África do Sul em 2011 e alguns sulafricanos brancos me contaram que efetivamente para eles a vida hoje é muito melhor porque não sabiam quando um empregado negro poderia lhe atacar, por exemplo, porque não reconheciam que os negros eram seus irmãos. Então a fraternidade não é uma coisa que se constrói, é uma coisa que “está”, inescapável. Você não pode escapar da fraternidade, por mais que deseje. Os EUA podem seguir pensando que eles são os pais do mundo árabe e que vão ensinar-lhes a democracia, e vemos o que acontece. Se nós esquecemos que somos irmãos e pensamos que como “pais” podemos levar ao outro a liberdade, a democracia, a única coisa que vamos conseguir é piorar e muito a situação.