O jornalismo, sob fogo de Donald Trump, foi redescoberto, comemora Alan Rusbridger, que por duas décadas foi editor-chefe do jornal britânico “The Guardian”. Por outro lado, ele aconselha, a corrosão publicitária por Facebook e Google acentua a necessidade de os jornais fecharem “um pacto com o diabo”, esse duopólio. Rusbridger editou, no “Guardian”, as reportagens que trouxeram ao mundo os escândalos da Agência Nacional de Segurança (NSA) e do Departamento de Estados dos EUA e do próprio jornalismo, com o tabloide “News of the World”.

3 X Rusbridger

As coberturas que marcaram o ‘Guardian’

“News of the World” 9 de julho de 2009 – O reporter Nick Davies revelou o escândalo dos grampos telefônicos do tabloide de Rupert Murdoch, o que levou ao seu fechamento em 2011.

Departamento de Estado 29 de novembro de 2010 – o “Guardian” já trabalhava com o WikiLeaks desde 2007, mas foi em 2010, com os documentos diplomáticos, que desvendou as ações dos EUA no mundo.

NSA 7 de junho de 2013 – Edward Snowden, que trabalhava para a Agência de Segurança Nacional dos EUA, revelou os programas de espionagem eletrônica, usando até empresas de tecnologia.

 

Deixou o jornal em 2015, e agora dirige uma faculdade em Oxford, Lady Margaret Hall, e o Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, da universidade.

Folha – Como o sr. Vê os passos tomados por Facebook e Google contra notícias falsas?

Alan Rusbridger – Eles estão reconhecendo que existe um problema. É um primeiro passo importante. É bom ver que estão pensando ativamente, levantando propostas. É um problema muito difícil de resolver, pela escala em que operam. Com bilhões de pessoas, encontrar uma solução que vá funcionar é difícil. Mas por baixo de tudo está a questão maior do grau em que o Facebook e o Google são editorialmente responsáveis pelo conteúdo que carregam. É algo que não querem reconhecer. Mas em algum momento deverá haver uma discussão com eles sobre que responsabilidades eles têm.

O primeiro grande choque e escrutínio sobre notícias falsas veio com a eleição de Trump. Qual foi o papel que o Facebook desempenhou?

É difícil quantificar mídia social, pelo mero fato de que estas plataformas estão nas mãos de bilhões de pessoas. Em termos das notícias falsas em si, há categorias diferentes. Há coisas que são inventadas para ganhar dinheiro. Há coisas criadas na campanha para fins políticos. E há coisas compartilhadas negligentemente. Meu palpite é que as notícias falsas tiveram algum impacto, mas é difícil dizer se foram determinantes.

Facebook e Google detêm hoje perto de 70% da publicidade digital nos EUA, um duopólio. Qual é o efeito para o modelo de negócios do jornalismo?

Não é mais possível às empresas jornalísticas sustentar seus negócios da forma que faziam, com uma combinação de assinatura e publicidade. Mas é difícil responsabilizar o Facebook: “Vocês não deveriam ser uma empresa de tecnologia tão brilhante”. Creio que existem conversas que as empresas noticiosas precisam ter com Facebook e Google, por exemplo, sobre ser justa a divisão do valor que as notícias representam para eles.

Por sua própria experiência, os dois gigantes são parceiros confiáveis para o jornalismo?

Bem, é um pacto com o diabo. Normalmente, quando você fala com as pessoas que comandam jornais, elas dizem: “Não podemos nos dar ao luxo de não estar lá, porque é onde o público está”. Acho que estamos ligados. É impossível imaginar empresas jornalísticas boicotando Google ou Facebook, então temos que trabalhar com eles, mas nossos interesses nem sempre são os mesmos. Acredito que precisa haver diálogo contínuo. Pessoas como Zuckerberg [presidente do Facebook] estão conscientes do enorme poder que têm, mas há uma responsabilidade que vêm com esse poder. E muitas das questões que estão enfrentando agora são questões que os jornalistas estão acostumados a considerar. Como o caso da proibição da imagem da guerra do Vietnã [de uma criança correndo nua após ser atingida por bomba]. Foi uma tentativa de usar algoritmos para tomar decisões que as empresas noticiosas tomam há séculos por meio do julgamento humano. Essa é uma das dificuldades de tentar soluções em escala tão vasta.

O sr. Acha que ainda é possível para um jornal de acesso gratuito como o “Guardian” sobreviver na internet?

Acredito que sim. Haverá perguntas quanto ao seu tamanho e missão, e eles podem ser obrigados a fazer menos do que fizeram antes. Tenho certeza de que estão pensando sobre tudo isso agora. Mas a grande esperança diante do que aconteceu nos últimos três meses é que as pessoas, que haviam se tornado um pouco desgostosas quanto ao valor dos jornalistas e das notícias, estão agora acordando e dizendo: “Não conseguimos imaginar um mundo sem jornalismo”. As assinaturas do “New York Times” e do “Washington Post” estão subindo, as pessoas estão acordando. Podemos agradecer Donald Trump por isso.

Os últimos anos e meses foram de grande jornalismo. O sr. Diria que, como no romance de Dickens “História de Duas Cidades”, é o melhor dos tempos e o pior dos tempos?

São duas verdades simultâneas. Algumas das técnicas jornalísticas que podemos usar agora são assombrosas. Nossa relação com o público é muito mais próxima e valiosa, podemos chegar a audiências infinitamente maiores que em qualquer momento na história. Então, muito do jornalismo hoje é fantástico. Mas não se pode ignorar que está terrivelmente ameaçado e que temos que repensar o que é o jornalismo e como ele se relaciona com um mundo em que todos podem se comunicar. O presidente americano sente que não precisa da mídia, que pode se comunicar diretamente, e isso em parte é verdade. Há um ambiente completamente mudado para o que fazemos, mas ao mesmo tempo há valorização maior do que fazemos.

Pelo que se viu na cobertura da campanha, Trump tem motivos para questionar?

Não penso assim. Acho que a imprensa americana foi bastante bem. Você pode argumentar que eles estavam desconectados da sociedade, porque subestimaram as forças que elegeram Trump. É a acusação mais séria que se pode fazer. Por outro lado, se olhar para o jornalismo como uma alternativa, como um foco de poder para aplicar os freios e contrapesos tradicionais, houve grandes reportagens e os jornalistas fizeram o que deveriam ter feito. Agora, havia um problema maior. Qualquer que seja a razão, a confiança no jornalismo nesse momento é baixa e fez esse tipo de jornalismo ter um efeito menor do que deveria. E você percebe que Trump está tentando desacreditá-lo, deslegitima-lo. É uma tendência perigosa, mas acredito que seja porque o jornalismo em si foi tão bom que ele sentiu a necessidade de fazer isso.

O sr diria a mesma coisa da cobertura do ‘’brexit’’?

Foi diferente. Era uma decisão complexa, por margem estreita. A imprensa britânica falhou ao não explicar a complexidade ou fazer justiça a ambos os lados. Só apresentou um deles, e isso não é o que a imprensa deve fazer.

 Haverá eleições neste ano na França e na Alemanha. O que a imprensa pode fazer de diferente em relação aos EUA?

Manter-se em contato com as pessoas, falar com elas, quer dizer, sair da redação. Certificar-se de que não está desconectada da sociedade. Que está retratando os sentimentos verdadeiros das pessoas, de modo que elas sintam que a imprensa não é uma instituição de elite, que sintam que a imprensa as representa e a seus pontos de vista.

Na verdade, manter o básico do trabalho: classificar o que é verdadeiro e o que é falso, fazer isso de forma rápida e precisa, dar contexto. Muitos dos conceitos básicos não vão mudar, não existe reinvenção do jornalismo nesse sentido. O que acho imprudente é dizer: ‘’Nosso trabalho é resistir’’. Não é, é testemunhar.

Tem-se debatido alfabetização em mídia [‘’média literacy’’] como forma de combater notícias falsas. O sr., que está agora em Oxford, é a favor?

Sim. Eu me choco agora até quando encontro estudantes brilhantes, pergunto suas fontes de informação e eles respondem ‘’Facebook’’. Eu insisto: ‘’Sim, mas de onde vem antes do Facebook?’’ Eles olham para você com estranheza, sem entender. É muito importante sensibilizar os jovens para a existência de fontes confiáveis e não confiáveis. Que eles precisam questioná-las e não devem e não devem compartilhar a menos que saibam serem notícias verdadeiras. As pessoas todas têm responsabilidade, como jornalistas, em relação à informação. Daí a alfabetização sobre mídia.

Fonte: Folha de São Paulo