Quatro quarteirões de inferno. Era essa a alcunha da cena aberta de uso de drogas em Vancouver, no Canadá, onde a enfermeira Liz Evans começou a trabalhar há mais de 20 anos. Era a “cracolândia” canadense, repleta de usuários de drogas injetáveis. Responsável pela criação de uma rede de atendimento a usuários ativos em situação de rua, ela começou com um hotel para abrigá-los ao qual se uniram clínicas médicas e odontológicas, programas de distribuição de seringas, salas de uso seguro, uma agência bancária e até uma loja de chocolates artesanais que emprega ex-moradores de rua que podem ou não ainda fazer uso de drogas. Com isso, declara a enfermeira, diminuiu a desordem pública local e os delitos ligados à cena aberta de uso. “Exigir que a pessoa pare de usar drogas para ajudá-la é tornar sua vida ainda mais difícil”, avalia.

Durante visita à cracolândia do centro paulistano, Liz se emocionou. “Sei que ajudar essas pessoas é um trabalho muito muito difícil, mas vivenciar suas transformações é extremamente gratificante.” Hoje, Liz coordena os dois maiores serviços de redução de danos de Nova York e se prepara para produzir um estudo de viabilidade de criação de salas de uso seguro de drogas naquela cidade.

Folha – Cenas públicas de uso de drogas, como a cracolândia no centro de SP, são contextos complexos. Por onde começar a intervir?

Liz Evans – A coisa mais importante é saber qual é o problema que você está tentando solucionar e não se distrair com o crack. Quando a conversa foca na droga, a gente perde a noção do que está acontecendo. A política de drogas está dominada por essa mentalidade fantasiosa de que, se nos livrarmos da substância, acabaremos com os problemas associados a ela. Isso torna usuários de drogas bodes expiatórios, impondo-lhes o abandono da sociedade. São pessoas que sofrem por uma série de outros fatores: pobreza, racismo, violência, abuso sexual, discriminação. Se não olharmos para eles, teremos sempre influxo de gente traumatizada que luta para sobreviver. Para essas pessoas, crack, cocaína, heroína ou álcool são uma espécie de remédio para que funcionem em um cotidiano brutal.

Como ajudá-las?

Um traço comum entre quem está nesta situação é se sentir um lixo, achar que sua vida não tem valor. Em geral, as respostas oferecidas a essas pessoas apenas reforçam essa percepção. E, então, quando não conseguem milagrosamente largar o abuso de drogas, dizemos que falharam. Precisamos dar a elas um espaço estável para viverem e obterem serviços essenciais.

O que você fez em Vancouver?

Trabalhava num hospital e era frustrante ver aquelas pessoas chegarem com problemas sociais que não tínhamos como resolver. Fui gerenciar um hotel para pessoas em situação de rua, gerido por uma organização sem fins lucrativos. Em três meses, tinha uma população complexa e problemática vivendo no edifício: 98% deles eram usuários ativos, alcoólatras, cheiradores de cola, usuários de heroína injetável, de cocaína e de crack. A narrativa dominante na época era que, se você ajudasse um usuário ativo de drogas, estaria ajudando-o a usar mais drogas. Seria preciso exigir que a pessoa parasse o uso para ser ajudada. Mas não exigi que nenhuma daquelas pessoas parasse de usar drogas para viver no hotel por um só motivo: eles iriam embora e seguiriam nas ruas. Não era ideológico, era pragmático.

Não é importante exigir abstinência como contrapartida?

Fomos convencidos de que a única forma de tratamento para dependência é abstinência. Não concordo com isso. Acho que tudo o que fazemos é tratamento. Fica fácil de entender quando falamos de outras substâncias. Se um fumante está vivendo uma crise – um divórcio ou uma morte-, ninguém vai aconselhá-lo a parar de fumar nesse contexto. No entanto, quando a droga é outra, não conseguimos entender que é preciso apoio e estabilidade para diminuir o uso da droga.

Qual foi a reação a isso?

Não anunciava o que estava fazendo. Deixei isso rolar nos bastidores porque esses caras não eram bem-vindos em lugar nenhum. Muita gente achou que eu era louca. Passei a inserir na narrativa um alerta básico: não estávamos falando de zumbis, monstros, animais ou demônios. Estávamos tratando pessoas. Começamos com um hotel e, ao longo de 22 anos, criamos uma rede de abrigos com programas que provêm comida, assistência médica, assistência odontológica, um banco e salas de uso seguro.

Mas não era frustrante que as pessoas seguissem usando drogas, mesmo acolhidas?

Foi um desafio manter o foco nas pessoas e não em mim e no que eu achava que era melhor para elas. Costumava chegar em casa do trabalho e chorar muito. Mas, se não ouvirmos o que elas querem, qualquer serviço que a gente desenvolva estará fadado ao fracasso porque será aquilo que nós  queremos para elas e não o que elas precisam. Esse método que chamamos de redução de danos é sobre aceitar as pessoas, e não ajudá-las a ser aquilo que você quer que sejam.

Então, qual é a vantagem dessa abordagem?

Oferecer apoio não fará todas as pessoas pararem de usar drogas. Mas será possível estabilizar suas vidas? Com certeza. E minimizar a desordem pública? Certamente. Diminuir pequenos delitos ligados a cenas abertas de uso de drogas? Sem dúvida. Foi isso o que vimos em Vancouver. Conseguimos fechar duas cadeias públicas na região, erradicamos o contágio por HIV e aumentamos a expectativa de vida das pessoas que atendemos em dez anos. Ajudar essas pessoas a ter alguma estabilidade torna suas vidas mais seguras e toda a comunidade mais segura. Os resultados desse método são, portanto, bons para todos.

Você deu treinamento a equipes do programa De Braços Abertos, instituído na cidade na gestão passada. Como foi?

Fiquei muito surpresa porque, para mim, foi um processo que durou mais de 20 anos da minha vida. E, de repente, estava acontecendo em São Paulo. Minha ansiedade era ter pessoas trabalhando nesta iniciativa inovadora mas sem um histórico de como lidar com questões complexas que surgem a partir dela, como manter hotéis limpos e evitar que ocorra tráfico por lá. Para isso, é importante ter alguém da equipe de programa na porta dos abrigos, e aqui não havia recursos suficientes para isso.

Se abstinência não for exigência para o ingresso num programa, é ela que mede seu sucesso?

Há muitos outros indicadores que pode ser usados para medir o sucesso de um programa para pessoas em situação de rua que usam drogas , como acesso a moradia, atendimento médico e serviços de saúde mental, bem como o fato de se alimentarem regularmente e ganharem peso. Em Vancouver, descobrimos que um dos melhores indicadores de sucesso do programa era a redução de interações dessas pessoas com o sistema de justiça criminal e com os serviços médicos emergenciais, assim como estabilidade na moradia.

Fonte: Folha de São Paulo